SOBRE

Com os jus racionalistas laicizantes da chamada Escola do direito natural e das gentes, com Grócio, Pufendorf, Barbeyrac e Burlamaqui, o direito natural passa a visionar-se como um conjunto de normas dimanadas da razão humana e exigidas pela própria recta ratio, normas perspetivadas como imutáveis no espaço e no tempo e nas quais devem fundamentar-se todas as regras do direito positivo. A natureza humana deixa assim de assumir-se como um dever-ser, reduzindo-se a um simples facto, enquanto a ideia de direito passa a fundar-se apenas numa consideração empírica (v. g. a ideia de apetite de sociedade de Grócio), desenhando-se, deste modo, o perfil do direito natural moderno que, segundo Fassò, é marcado pela laicidade, pelo racionalismo, pelo individualismo e pelo subjetivismo.

É o tal direito verdadeiro e justo mesmo que Deus não exista, ou que não cuide das coisas humanas. Porque Deus também não pode fazer com que dois mais dois deixem de ser quatro, conforme a célebre frase de Grócio, repetindo um dos argumentos usados pelo intelectualismo escolástico na sua polémica contra o voluntarismo franciscano. Surge assim, no plano das conceções jurídicas, um processo equivalente à teoria do conhecimento de Leibniz e às leis da física enunciadas por Galileu, num movimento que visa, sobretudo, garantir a independência do direito face à teologia.

Este poder da razão, de cada um poder descobrir as regras do justo, aconteceu porque se considera que a razão individual é capaz de fugir à contingência e atingir a ordem da natureza, bastando, para tanto, que qualquer homem se volte sobre si mesmo e que, iluminado pela razão, detete o justo e o verdadeiro para todos os tempos e todos os lugares. Vai assim laicizar-se o transcendente e a antítese em torno da qual passa a girar o direito natural deixa de ser a tensão entre a cidade dos homens e a cidade de Deus, mas antes a que opõe o direito positivo e a razão.

Surge, deste modo, um direito natural independente de qualquer fé religiosa, uma medida ou um padrão para o direito positivo que o homem, na sua racional individualidade, poderia determinar. Acresce que os jus racionalistas desenvolvem os princípios do direito natural de forma pormenorizada, fazendo classificações do direito, em géneros e espécies. Chegam mesmo a criar, para cada ramo do direito, códigos idênticos aos atuais códigos de direito positivo. Na verdade, quase todos procuram a elaboração de um código da razão, através da elaboração de sínteses sistemáticas acreditando na construção jurídica, principalmente na codificação racional, como elemento reformador dos homens e das sociedades.

Os próprios tratados e manuais de ensino desenvolvem-se ao estilo das codificações com pensamentos seccionados e numerados em formas de artigos, por vezes, titulados, com um esquema geral de sistematização, com subsecções, secções, capítulos, partes e livros, como se cada pensador fosse um legislador com pretensões de eternidade. É, aliás, contra este modelo de direito natural que reage a Escola Histórica do Direito, assumindo um conflito entre a razão e a história.

Com efeito, o jusracionalismo gera um direito natural que, parecendo, e aparecendo, como abstrato, é, contudo, demasiado concreto. Porque, se eleva à categoria apriorística uma série de máximas, talvez elas não passem de meras induções empíricas, fundadas na observação e na experiência, bem como na análise das regularidades, dado entender-se o geral como aquilo que é comum a vários objetos, à maneira das ciências físicas. Esta ilusão de só poder conhecer-se aquilo que suscetível de ser medido ou enquadrado nas regularidades acaba, aliás, por afastar do campo da observação aquelas irregularidades e aquelas anormalidades que, afinal, talvez sejam o normal da vida ativa daqueles seres que nunca se repetem.

Deste modo, se exclui o singular e a diferença, na procura de um conceito de lei demasiadamente restritivo. Por outras palavras, aqueles princípios que se pretendem eternos e derivados da razão, não passam de conceitos empíricos e condicionados. O direito natural do jusracionalismo normativista tem a pretensão de assumir-se como um sistema ideal, independente das circunstâncias. Efectivamente, deixa de haver, como sempre defenderam os clássicos, a possibilidade de uma variedade de regimes legítimos, porque a legitimidade, transformando-se em mera forma não é fecundada pela matéria, pelas circunstâncias do tempo e do lugar. Por outras palavras, procura-se uma solução universal capaz de aplicar-se universalmente, gerando-se aqueles doutrinarismos ou especulacionismos, concebidos quase matematicamente.

Aqueles modelos que levam Almada Negreiros a proclamar que as frases que hão-de salvar a humanidade já estão todas escritas, apesar de continuar a ser necessário salvar a humanidade.

Outros jus racionalistas são Johann Gottlieb Heineccius ou Heinecke (1681-1741), próximo de Pufendorf; Henrique de Cocceji (1644-1719), sucessor do mesmo Pufendorf em Heidelberg; Samuel Cocceji (1679-1755), filho de Henrique e alto dignitário prussiano no tempo de Frederico II, O Grande, que foi autor do primeiro projeto de codificação prussiano, o Projekt des Corporis Iuris Fridericiani, de 1749; o austríaco Karl Anton von Martini (1726-1800), ligado à administração de Maria Teresa e de José II, autor do Allgemeines bürgerlich Gesetzbuch für die deutsches Erblãnder, de 1811; e os suíços Emmerich de Vattel (1714-1767); Jean Barbeyrac (1674-1744), professor em Lausanne e Berlim; e Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748), professor em Genebra.

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